Elīna Garanča inspira texto de Peter Rosenwald sobre a voz humana e a arte do canto, que tem na mezzo-soprano letã um dos maiores talentos da atualidade

(Texto originalmente publicado no website São Paulo São)

No início dos tempos, deve ter sido a voz humana, imitando os sons da natureza, começando a descobrir o prazer de fazer sons que se encaixam bem juntos, deixando a voz correr para cima e para baixo, alto e suave, cantando mesmo antes das primeiras palavras chegarem.

Quando nos sentamos confortavelmente numa sala de concertos e temos o privilégio de ouvir uma voz soberba, estamos vivendo um dos grandes tesouros da vida, transportando-nos de volta, talvez, aos primeiros tempos do homem. Temos que nos perguntar por que, cantar mais do que qualquer outra forma de arte, toca algo tão profundo dentro de nós.

Graças ao Mozarteum, o público de São Paulo que assistir aos concertos da cantora letã Elīna Garanča nos próximos sábado (22) e segunda (24) às 21 horas na Sala São Paulo certamente compartilhará essa experiência. Ela não deve ser perdida. Com a Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro sob a regência de Constantine Orbelian, Elina cantará uma grande variedade de peças.

Ela é uma das poucas cantoras que pode nos levar às lágrimas ou ao riso mesmo quando vista na televisão. Elina traz uma qualidade verdadeiramente especial que nunca briga com a música, mas sempre a enriquece. Desde que o Mozarteum trouxe a mezzo soprano americana, Frederica von Stade para São Paulo, há alguns anos, não tivemos a oportunidade de ouvir uma mezzo soprano internacionalmente reconhecida, cujo alcance vocal é tão grande e cuja maestria de nuances lhe permite tocar um repertório excepcionalmente amplo.

Seu concerto em São Paulo contará com árias de compositores do século XIX como Jacques Offenbach e Georges Bizet e os mestres mais modernos Pietro Mascagni, Manuel de Falla e Camille Saint-Saëns, para quem meu coração se abre com sua voz em ‘Sansão e Dalila’, um dos favoritos pessoais de Elina, mais recentemente interpretado por ela em uma aclamada nova produção no Metropolitan Opera House de Nova York.

O canto, a produção vocal de tons musicais, é tão básico para o homem que suas origens se perdem na antiguidade e são anteriores ao desenvolvimento da linguagem falada. A voz presume-se ser o instrumento musical original, e não há cultura humana, por mais remota ou isolada que seja, que não cante (https://www2.lawrence.edu/fast/KOOPMAJO/antiquity.html).

Ouvir Elina e admirar como ela usa seu maravilhoso instrumento musical é lembrar-se das origens naturais do canto e perceber como a música tem o poder de nos oprimir.

Fora do palco, Elina exala uma confiança tranquila sem nenhuma das características extravagantes e arrogantes de algumas “divas”. Ela é pensativa sobre seu trabalho e, quando questionada durante uma entrevista de televisão na estação de rádio cultural WQXR de Nova York, ela faz questão de ressaltar “o tempo todo de novos desafios”. “Eu quero chegar ao limite. Quando você já cantou Carmen seis ou sete vezes, o que mais você pode mostrar”? Criticamente descrita na entrevista como “uma artista consumada cuja voz, distintamente escura e quente, ostenta um poder e calor para o qual o seu régio porte e aparência atraente fornecem o contraponto perfeito” é tão florido quanto se pode imaginar, mas se até mesmo um pouco exagerado, é justo louvor (https://www.youtube.com/watch?v=ADM5xcQRC_0).

Ela é uma perfeccionista, extremamente disciplinada e disposta a fazer grandes esforços para obter um papel operístico de acordo com seus padrões. “Fui algumas tardes a uma estação ferroviária próxima para ver como as pessoas se movem, como ajustam seus óculos, detalhes minúsculos que mostram um estado de espírito. Isso faz uma grande diferença em dar vida a um papel”. Quando se prepara para um novo trabalho, gosta de incluir as suas árias em concertos muito antes da produção da ópera, moldando-as para que se sinta confortável ao cantar a ópera pela primeira vez.

Escreve e atualiza continuamente um livro, publicado originalmente em alemão, mas internacionalizado para publicação em outros idiomas, que estará disponível no próximo ano. Ela fala de sua vida entre dois mundos diferentes: entre o Leste empobrecido de sua juventude e o Oeste de sua carreira, suas raízes e vôos de fantasia, cuidando de seus dois filhos e suas constantes viagens, talento e autodisciplina, arte e vida. O livro é menos uma biografia do que uma revista regularmente atualizada, que em breve será lançada em sua terceira edição. “Quando tiver oitenta anos e não cantar mais, quero poder olhar para trás e lembrar as coisas como elas eram”.

O que faz a Elina Garanča seguir? Sentimos que lá no fundo, é porque ela está se divertindo muito. “Eu posso ser simpática”, diz ela rindo sobre si mesma, “e não tão simpática”. Talvez seja a sua energia ardente – a sua atitude de “empurrar-me até aos limites” – que se combina com um imenso talento natural para fazer dela a artista de renome mundial em que se tornou.

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Peter Rosenwald mora em São Paulo e combina sua ocupação como estrategista de marketing para grandes empresas brasileiras e internacionais. Tem também carreira em jornalismo onde atuou por dezessete anos como crítico sênior de dança e música do ‘The Wall Street Journal’.

 

(Desde 2005 Elīna Garanča é artista exclusiva do selo Deutsche Grammophon – DG)