Terje Mikkelsen

Um maestro “rock ‘n’ roll” à frente da tradição russa

Por Ana Francisca Ponzio

O norueguês Terje Mikkelsen, já apelidado de “maestro rock ‘n’ roll” por causa de sua versatilidade musical, estará à frente da Orquestra Sinfônica Estatal Russa na abertura da Temporada do Mozarteum Brasileiro de 2015.

Em entrevista, Mikkelsen fala sobre o programa que será apresentado, sobre o vigor da tradição musical russa e a importância da educação para o desenvolvimento da cultura musical. Disposto a atrair novas plateias, ele também conversa sobre seu bem-sucedido projeto com Keith Emerson, lenda do rock.

“Não vejo limitações em qualquer gênero musical, desde que seja apresentado no mais alto nível”, diz Mikkelsen, também conhecido por seu carisma. “Um espectador deve sair do teatro sentindo-se inspirado, comovido, iluminado e renovado pela performance dos músicos, da orquestra”, destaca o maestro.


 O senhor pode por favor comentar o programa que a Orquestra Sinfônica Estatal Russa apresentará em São Paulo? Quais são as peculiaridades deste programa?

 Terje Mikkelsen – A escolha dos programas foi norteada pela ideia de apresentar algumas das peças mais populares dos repertórios russo e internacional – não somente pela alta qualidade destas composições musicais, mas também por causa de suas riquezas melódicas e associações programáticas.

O foco principal é Tchaikovsky porque estamos celebrando seu 175º aniversário.

Uma das obras do programa, a Quarta Sinfonia de Tchaikovsky, foi dedicada pelo compositor à sua grande amiga e mecenas, Madame von Meck. Eles nunca se encontraram, mas se corresponderam por cartas ao longo da vida. Por meio dessa correspondência, sabemos que cada movimento da sinfonia reflete o estado de espírito infeliz do compositor e o impacto do destino impiedoso sobre ele. Felizmente, também revela momentos de alegria e contentamento, vindos de memórias de sua juventude ou simplesmente de algumas impressões otimistas da felicidade de outras pessoas.

Já a Abertura Fantasia de Romeo e Julieta e a suíte de A Bela Adormecida são baseadas em poemas e contos de fadas famosos e ambas são plenas de temas de grande beleza e de humores contrastantes.

Concerto para Violoncelo e Orquestra de Dvorák é a mais importante composição de violoncelo e está entre as mais tocadas da literatura para este instrumento musical. Apresenta o cello em sua máxima dimensão, seja quanto à gama sonora , seja quanto às possibilidades técnicas. Ao mesmo tempo, neste concerto a mesma dimensão do instrumento solo se estende à orquestra.

Sendo um norueguês, eu tenho sempre prazer em apresentar minha música nacional na Rússia e ambos, Halvorsen e Grieg, são compositores altamente apreciados pelo público russo. A Suíte nº 1 de Peer Gynt, a famosa peça de Henrik Ibsen, é tocada em todo o mundo e eu estou certo que é muito conhecida no Brasil. Eu também espero que a brilhante Norwegian Rhapsody nº 1 de Johan Halvorsen, baseada em melodias folclóricas norueguesas, seja uma descoberta interessante para a plateia de São Paulo.

 

O que faz da Orquestra Sinfônica Estatal Russa um patrimônio artístico de seu país?

Mikkelsen – Graças  à continuidade de líderes musicais do mais alto nível, como os maestros Evgeny Svetlanov e Vladimir Jurowski, a Orquestra Sinfônica Estatal Russa desenvolveu uma qualidade única quanto à homonegeneidade de som e à intensidade de sua expressão musical. O prestígio que envolve esta orquestra assegura a afluência dos melhores músicos de toda a Rússia.

 

O senhor tem uma ampla experiência na Rússia, um vasto conhecimento da vida musical russa. Acha que a chamada “alma russa”, o temperamento russo, conferem uma qualidade especial aos músicos do país?

Mikkelsen –Eu tenho trabalhado com várias das grandes orquestras russas há cerca de 25 anos. Acredito que os músicos russos têm uma musicalidade excepcional e inata, somada a uma profunda emotividade, que pode ser descrita como a alma russa. Podemos traçar um paralelo com a literatura, onde esta essência foi maravilhosamente descrita por Tolstoi e Dostoievsky.

Na Rússia, desde as primeiras aulas de educação musical, a maioria dos músicos tem que frequentar concertos, teatro, ópera, balé e ao mesmo tempo ter muito contato com literatura. Isto ocorre durante todo o período de desenvolvimento, enquanto estudante e artista, e proporciona um conhecimento amplo, uma compreensão abrangente da cultura.

Além disso, eu acredito que o espírito russo ajuda cada músico a criar algo especial durante as performances, impulsionando-o a ampliar os limites da dinâmica, os fraseados das linhas melódicas, que ao mesmo tempo se combinam com o controle da articulação do som.

Eu ainda diria que uma orquestra russa, principalmente quando toca as músicas dos compositores de seu país, procura expressar toda a intensidade, dor, glória e alegria que estes autores tentaram transmitir quando escreveram a música.

É desta atitude intensa com relação à performance musical e também do rico repertório russo que eu procuro me manter próximo.

 

A Rússia tem uma tradição musical histórica. Esta tradição é ainda muito forte no dia a dia do país? O que determina a força e a solidez da música clássica na Rússia?

Mikkelsen – A tradição da música clássica é tão antiga na Rússia quanto na Europa Central. Mas, a partir de Mikhail Glinka (1804-1857), os compositores russos começaram a explorar temas musicais da tradição folclórica de seu país.

O Teatro Bolshoi tem 190 anos e pertence ao topo das casas de ópera no mundo. O conservatório de São Petersburgo foi inaugurado em 1862 e o Conservatório de Moscou em seguida, em 1866. Estas duas instituições têm recebido os mais famosos professores de todos os tempos e eles ainda sustentam o mais alto nível de educação musical do mundo. Além disso, há muitas salas de concertos com acústica de padrão mundial, que atrai público.

O nível de prestígio das instituições educacionais e o alto padrão das casas de óperas e das orquestras sinfônicas, combinados com o fato de que grande parte do repertório internacional de música foi escrito por compositores russos, assegura o interesse do público e mantém a demanda por performances de alta qualidade. Não é de admirar que no dia a dia atual os teatros da Rússia estão sempre cheios, com público constantemente entusiasmado.

 

O que é importante para o desenvolvimento e a expansão da cultura musical em um país?

Mikkelsen – A educação cultural é muito importante para o desenvolvimento e a expansão da música clássica. É essencial que jovens se inspirem e aprendam sobre todas as formas de atividades culturais, já na mais tenra idade. A importância disto é óbvia, especialmente na sociedade atual, onde estamos sob constante influência de técnicas publicitárias agressivas e da cultura de massa em geral.

Em muitos países observamos que as artes estão sendo substituídas por assuntos de mais fácil adaptação e o que faz parte de uma boa educação agora é visto como antiquado.

Temo que isto poderá causar um grande retrocesso, com próximas gerações totalmente dependentes do uso de internet e de jogos virtuais como única forma de recreação e de atividade nas horas livres.

 

O senhor é chamado de “maestro rock ‘n’ rool” porque também apresenta jazz, rock e música de cinema em programas com orquestras e ainda por causa de sua colaboração, a partir de 2006, com o pianista e compositor britânico Keith Emerson, uma lenda do rock que despontou na década de 1970 com a banda Emerson, Lake & Palmer. Qual o significado de experiências como esta?

Mikkelsen – Tive grande prazer em trabalhar no projeto Three Fates (Três Destinos) junto com Keith Emerson, o guitarrista Marc Bonilla e a Orquestra da Rádio de Munique. Keith Emerson causou grande impacto sobre grandes pianistas com os quais trabalho como regente.

Posso mencionar pelo menos dez músicos de alto reconhecimento internacional que me disseram ter optado pela música clássica após sentirem-se inspirados, na juventude, por Keith Emerson e as adaptações que ele fez de vários clássicos conhecidos, entre outros a Suíte Quebra-Nozes de Tchaikovsky, Quadros de uma Exposição de Mussorgsky, Fanfarra para o Homem Comum, de Aaron Copland.

Keith Emerson é uma lenda dos instrumentos de teclado, possui uma técnica da mão esquerda de causar inveja a muitos pianistas clássicos. Nós nos apresentamos juntos na China, em um projeto ambiental do World Bank, e gravamos CDs na Europa e Los Angeles.

Agora estamos preparando um concerto que se realizará em Londres, em julho, quando Keith, Marc e eu apresentaremos o projeto Three Fates junto com a BBC Concert Orchestra, no Barbican Centre.

Há músicos de jazz e rock fantásticos e eu sinto que os músicos da área clássica têm algo a aprender com eles e vice-versa.

Também estou certo que algumas pessoas que participam dessas experiências encontrarão mais tarde seus caminhos para a apreciação dos concertos clássicos.

Sei que muitos músicos de orquestras tocam jazz e rock e não vejo limitações em qualquer tipo de gênero musical, desde que seja apresentado no mais alto nível.

 

Acha que esses encontros que misturam músicas clássica e pop podem atrair uma nova geração de público para a área erudita?

Mikkelsen – Sim e acho maravilhoso podermos nos apresentar para um novo público.

 

O senhor tem fama de estabelecer comunicação fácil com músicos e público. Isto faz parte de seu temperamento, mas por que esta comunicação, que nem todos os maestros conseguem, é importante?

Mikkelsen – Acredito profundamente que minha tarefa é inspirar músicos a apresentarem o máximo de suas possibilidades, a fim de poder causar impacto nos ouvintes. Em outras palavras, acho importante estimular a comunicação de coração para coração.

Um espectador deve sair do teatro sentindo-se inspirado, comovido, iluminado e renovado pela performance dos músicos, da orquestra.

 

Como o senhor vê a música clássica hoje, em um mundo cada vez mais ligado à comunicação virtual? Como atrair novos públicos para a música clássica?

Mikkelsen – Eu ainda acredito que a música clássica sobreviverá, a despeito das devastações promovidas pela influência virtual. Nossa mais importante contrapartida é juntar todos os esforços para atrair jovens gerações para a música clássica e mostrar que vale a pena frequentar concertos e espetáculos de música ao vivo.

Para assegurar isto, devemos levar frescor, alegria e entusiasmo para estas novas plateias, junto com a mais alta qualidade de performance de nossas atuações artísticas.