Jaques Morelenbaum
Por Ana Ponzio
Tributo a Tom Jobim, espetáculo que marca a programação de 2019 do festival Música em Trancoso, exaltará uma das mais altas expressões da música brasileira: Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim (1927-1994).
Para interpretar as obras do compositor, maestro, pianista, cantor, arranjador e violonista que, segundo a revista Rolling Stone, é o maior expoente de todos os tempos da música popular brasileira, estará em cena, no dia 27 de março, Jaques Morelenbaum, acompanhado da cantora Paula Morelenbaum e mais três grandes músicos – Adriano Souza (piano), Caio Márcio Santos (violão) e o legendário Paulo Braga, reconhecido como o pai da bateria moderna brasileira.
Também um mestre da música brasileira, o violoncelista, compositor, arranjador e maestro Jaques Morelenbaum trabalhou com Tom Jobim durante uma década. Assim como Jaques, também Paula Morelenbaum e Paulo Braga conviveram intensamente com Jobim, participando de gravações e apresentações em muitos países.
Na entrevista a seguir, Jaques Morelenbaum fala sobre o Tributo a Tom Jobim, sua consagrada carreira internacional, Heitor Villa-Lobos – fonte de inspiração para ele e Jobim – e também sobre o privilégio de viver para a música.
Como será o Tributo a Tom Jobim no Música em Trancoso de 2019?
Jaques Morelenbaum – Será um espetáculo inspirado no disco que gravamos – eu, Paula Morelenbaum e o pianista e compositor japonês Ryuichi Sakamoto, dedicado à obra do nosso grande maestro, Antônio Carlos Jobim. A banda terá uma formação clássica da bossa nova, com voz, violoncelo, violão, piano e bateria. O meu violoncelo tem uma constituição pouco usual, com cinco cordas, uma delas mais grave do que o violoncelo convencional. Portanto, também faço a parte do contrabaixo. Outra peculiaridade de nosso grupo é que o baterista, o legendário Paulo Braga, atuou na Nova Banda de Tom Jobim por dez anos, assim como eu e Paula.
Quais são as principais músicas escolhidas?
Jaques Morelenbaum – Escolhemos um repertório que abrange a fase bossa-novista do Tom. Mas, o espetáculo evidencia principalmente o período pré-bossa nova, incluindo belas canções como Praias Desertas, Estrada Branca e Fotografia, entre outras.
Conte um pouco sobre sua longa relação artística com Tom Jobim. Quais foram os momentos mais marcantes desta parceria?
Jaques Morelenbaum – No início dos anos 1980, participei de uma temporada no Rio de Janeiro com Olívia Byington e Paulo Jobim, que incluía também a banda de Danilo Caymmi, afilhado de Tom, e já nesta época membro da Nova Banda. Tom foi assistir a este show e, provavelmente, ao me ouvir tocar música popular ao violoncelo, e certamente influenciado por Villa-Lobos, que também era violoncelista e uma de suas grandes inspirações, pensou na possibilidade de contar com a sonoridade do violoncelo em sua banda.
Para mim foi um enorme privilégio poder conviver com o mestre por dez anos, ensaiando cotidianamente com ele, participando de suas gravações e concertos, tendo a chance de conhecer intimamente suas ideias musicais e sua visão do todo, da cultura e da vida, a partir de uma perspectiva familiar. Para mim, entre os inúmeros momentos marcantes desta trajetória, posso citar o primeiro concerto que fiz com Tom, que aconteceu em 29 de março de 1985, no legendário Carnegie Hall, em Nova York, assim como a oportunidade que Tom me deu ao me convidar para escrever arranjos e produzir o seu álbum Passarim, entre outros.
O que significa para você a música de Tom Jobim, tão rica e capaz de criar conexões com povos de todas as culturas? O que ela representa para as novas gerações?
Jaques Morelenbaum – Tom Jobim é reconhecido mundialmente como um dos mais importantes compositores de toda a história da música. Portanto, ele representa um enorme orgulho, que os brasileiros podem e devem sentir por pertencerem à mesma pátria que o maestro. Sua música elevou consideravelmente o nível de inspiração, profundidade e qualidade da música brasileira. Por consequência, ela representa um enorme estímulo para que os novos jovens compositores busquem um elevado grau na qualidade de suas criações. Para mim, pessoalmente, a música de Tom Jobim me tornou muito mais exigente em relação à minha própria música, pois a partir de nosso contato ele tornou-se uma enorme referência de qualidade e de bom gosto. A partir de nosso encontro, toda música que eu faço, é como se fosse feita para agradar ao maestro!
Tom Jobim amava a proximidade com a natureza – e você também. O festival Música em Trancoso acontece em um palco integrado à natureza paradisíaca do sul da Bahia. Você acha que isto pode somar algo especial ao espetáculo?
Jaques Morelenbaum – A música é uma livre interpretação do que a natureza nos diz. Portanto, ter a oportunidade de fazer música cercado da mais bela natureza é o que há de mais precioso para um músico e, certamente, isso acarretará uma dose muito especial de inspiração para quem faz e para quem aprecia essa arte!
Você é um mestre que trabalhou com vários mestres. Além de Tom Jobim, realizou outras parcerias importantes, com Egberto Gismonti, Caetano Veloso etc. – além das parcerias internacionais, como Ryuichi Sakamoto, Sting, David Byrne. Uma está relacionada com a outra? Uma levou à outra? O que esses trabalhos em conjunto somam e significam para você, considerando também sua parceria com Paula Morelenbaum?
Jaques Morelenbaum – Sem sombra de dúvida cada uma dessas parcerias está relacionada com as outras. Os músicos sabem que são com as experiências e trocas com outros músicos que se tem a real oportunidade de evoluir, de acumular uma bagagem de informações, de formação e de inspirações que vão influenciar toda a música que faremos agora e no futuro. Tenho absoluta certeza de que o fato de ter tocado e trocado experiências com esses mestres foi fundamental para que outros mestres tivessem a curiosidade e o interesse de tocar comigo. Desta lista que você citou acima, não tenho a menor dúvida de que o fato de ter tocado com Jobim estimulou decisivamente a Gismonti, Caetano, Sakamoto e Sting convidarem-me para tocar com eles!
Você vem de uma família de músicos e tem uma sólida formação clássica. Qual a importância da bagagem clássica para você e o quanto ela continua presente em seu trabalho?
Jaques Morelenbaum – A música clássica é uma modalidade artística que se baseia no estudo e análise profunda das obras dos grandes mestres. Creio que quanto mais formos capazes de compreender os grandes artistas, seus estilos e discursos artísticos, mais condições teremos de exercer a grande arte, pois poderemos enxergar horizontes cada vez mais amplos.
Sabe-se que Villa-Lobos foi uma referência forte para você, inclusive porque ele também era violoncelista. Fale um pouco dessa influência. Por que se sente atraído pela música de Villa-Lobos?
Jaques Morelenbaum – Creio que Villa-Lobos teve uma visão musical extremamente ampla, e a consciência de que a expressão musical mais pura e natural emana do povo. Ele conseguiu conjugar como poucos esta pureza, assim como a naturalidade do folclore com a capacidade analítica da música erudita e com a ciência musical. Desde que me reconheço como artista, eu busquei um caminho análogo ao caminho percorrido por Villa-Lobos. Escolhi o violoncelo como meu instrumento principal ainda muito jovem, levado apenas pela paixão que a sonoridade deste instrumento exercia em mim, reconhecendo logo a seguir a brasilidade da música de Villa-Lobos e a nítida paixão que o violoncelo despertava nele. Senti uma atração irresistível de seguir seus passos.
Como ocorreu sua transição do clássico para o popular?
Jaques Morelenbaum – Essa transição não está no meu passado, ela sempre esteve muito presente em mim, desde os meus mais tenros anos, e seguirá guiando-me artisticamente para sempre. Ao mesmo tempo que de dentro de minha casa ecoavam os sons da música de concerto, da rua vinham os estímulos pela procura de uma arte mais universal e irrestrita. Este foi o caminho de Villa-Lobos, de Tom Jobim, de tantos outros, e desejo que seja o meu também.
Por que optou pelo violoncelo? Fale um pouco sobre a sonoridade deste instrumento, sobre sua atração por ele. O violoncelo proporciona uma sintonia especial com a música de Tom Jobim?
Jaques Morelenbaum – Estudei piano estimulado pelos meus pais, até meus 12 anos de idade. Mas, como desde sempre convivi com o ambiente orquestral, já que meu pai, Henrique Morelenbaum, é maestro, sentia enorme fascinação pelas possibilidades tímbricas e expressivas de vários instrumentos orquestrais. Creio que o violoncelo conquistou-me pela semelhança que o seu timbre tem com a voz humana, pelo romantismo que seu som inspira, sendo geralmente escolhido pelos compositores para expressar os momentos mais apaixonados em suas obras. Certamente a brasilidade que o cello assumiu a partir de Villa-Lobos também foi um fator determinante em minha escolha. Creio que Tom Jobim também percebeu essa escolha de timbre e sotaque dentro da obra do Villa, e isso foi determinante para que Tom quisesse ter a sonoridade do cello em sua música.
Você participou de mais de 700 gravações com grandes músicos, mas somente em 2014 gravou um disco seu – o Saudade do Futuro Futuro da Saudade. Músicas deste disco estão inclusive incluídas no concerto sobre Tom Jobim que apresentará no festival Música em Trancoso. Fale um pouco sobre este disco, o significado do título.
Jaques Morelenbaum – A dedicação que a vida me exigia a partir das oportunidades que tive de tocar com Jobim, Gismonti, Sakamoto, de exercer a direção musical de Caetano Veloso, de Gal Costa e Gilberto Gil, entre tantos outros grandes músicos, levou-me a postergar a realização de meu próprio projeto musical, para poder dedicar-me integralmente à obra dos grandes mestres. A realização deste meu projeto deu-se finalmente em 2014, como consequência do trabalho desenvolvido por um trio que criei em 2005, juntamente com o grande violonista e arranjador Lula Galvão, e o baterista Rafael Barata. Este meu projeto, o CelloSam3aTrio, baseia-se na fascinação que um disco de João Gilberto, gravado em 1973, exerceu em mim, por dizer-me tanto, apesar de constituído apenas da voz e violão de João, adicionados de uma leve percussão. Considerando o samba como o estilo musical que mais sintetiza o espírito e a cultura brasileira, decidi tomar João Gilberto como mestre, e buscar substituir sua voz pela voz do violoncelo, mantendo o violão e a percussão. O título de meu álbum relaciona-se com a brasilidade do termo “saudade”, de como este termo é inerente ao que se amou no passado, e ao que se sente falta no presente, e projetando todo esse sentimento no futuro, com a vontade que tenho de legar às novas gerações uma voz de esperança por uma existência com mais amor e mais beleza.
Como violoncelista, maestro, arranjador, compositor, produtor, você vive a música em sua plenitude? É uma condição privilegiada?
Jaques Morelenbaum – Acredito piamente ser um privilégio poder viver para a música, pois tenho consciência do poder curativo da mesma, e da missão que temos, nós, artistas, de levarmos à alma das pessoas uma mensagem de construção da beleza e de aprofundamento espiritual.