Elīna Garanča teste

Por Ana Ponzio

Mais uma grande estrela do canto lírico se apresenta no Brasil pela primeira vez, através do Mozarteum. A mezzo-soprano Elīna Garanča, nascida na Letônia, realizará dois concertos na Sala São Paulo, dias 22 e 24 de junho, em companhia da Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, sob regência do norte-americano Constantine Orbelian, maestro convidado. Certamente, será um dos grandes acontecimentos musicais de 2019, em palcos brasileiros.

Aos 42 anos, Elīna Garanča brilha nos principais palcos do mundo em alguns dos mais importantes papeis do repertório operístico. Sua interpretação de Carmen, de Bizet, que ela apresentou pela primeira vez em 2009 no Metropolitan Opera de Nova York, é especialmente famosa. “É a melhor Carmen em 25 anos”, publicou o jornal The New York Times.

O programa que a mezzo-soprano apresentará em São Paulo reflete seus grandes momentos. Além de Carmen, ela cantará árias de Sansão e Dalila, de Saint-Saëns, que apresentou com enorme sucesso no Teatro da Ópera Estatal de Viena e também no Metropolitan de Nova York. O verismo italiano, representado pela Cavalleria Rusticana de Mascagni, e composições de seu último disco, Sol y Vida, especialmente as zarzuelas, integram o espetáculo.

Casada com o maestro inglês Karel Mark Chicon, mãe de Catherina Louise, sete anos, e Cristina Sophie, cinco anos, Elīna Garanča mora atualmente em Málaga, na Espanha. No momento, sua maior expectativa é interpretar Amneris, da ópera Aída, de Verdi, e também Kundry, de Parsifal de Wagner, programadas para as próximas temporadas.

Na entrevista a seguir, é possível conhecer um pouco de Elīna Garanča, cujo fascínio costuma proporcionar momentos mágicos para plateias de todas as culturas.

 

Estreia no Brasil

“Estou muito animada com a oportunidade de cantar em São Paulo. Serão minhas primeiras apresentações no Brasil e sinto que este é o momento de estar neste país, depois de me apresentar em tantos lugares do mundo. Quero transmitir para o público todas as emoções que experimento com as músicas que cantarei.”

 

Personagens heroicos e zarzuelas são destaques do programa

“Nos concertos que realizarei em São Paulo, tento interpretar obras ou personagens através das quais o público internacional me conheceu – como Carmen, que muito contribuiu para minha evolução, assim como Dalila.

Nos meus concertos, procuro apresentar a capacidade da minha voz, seguindo o repertório que estou cantando no momento ou em apresentações recentes. Ao longo de minha carreira eu fui mudando de repertório, minha voz mudou à medida que fiquei mais madura e percebi que, para meu desenvolvimento contínuo e para um futuro mais estimulante e desafiador, eu deveria abordar personagens mais heroicas, como Dalila e Carmen. E estou muito entusiasmada com isso porque acredito que não é a potência vocal que determina o personagem, mas o impacto dramático, a atuação e o temperamento do intérprete.

Quanto à zarzuela, eu caí de amores por este gênero espanhol há muito tempo, desde quando comecei a visitar a Espanha. Logicamente, as gravações de Teresa Berganza e Victoria de Los Angeles também me mostraram a beleza da zarzuela, a qual exige conhecimento do estilo, do idioma, do temperamento, para se fazer uma boa apresentação. Vale notar que não é um gênero light, mas uma música muito séria e cheia de detalhes exigentes.”

 

Constantine Orbelian e Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro

“Constantine Orbelian é um maestro que adora os cantores, as vozes. Faz tudo o que está ao alcance dele para que os cantores se sintam como uma rainha ou um rei da noite. Espero trabalhar mais com ele porque tornou-se um colega maravilhoso, um ótimo amigo.

Estou também muito animada com a chance de trabalhar com os músicos jovens da Orquestra Acadêmica Mozarteum Brasileiro, em poder fazer música com eles, talvez lhes oferecer algo de minha experiência, recomendações, troca de energias ou de pontos de vista sobre certas peças musicais.”

 

Evolução sem “encaixotar” a voz

“Meu repertório tem sido marcado pela busca de evolução. Atualmente digo a meus estudantes que lutem contra o encaixotamento da voz. Isto é, com muita frequência, em nossos estudos, os professores ou as escolas tendem a nos colocar em uma caixa: você é um ‘cantor Mozart’, um ‘cantor Strauss’ ou um ‘cantor Verdi’, seja lá o que for e isso restringe a possibilidade de desenvolvimento da voz.

Fico facilmente entediada em cantar sete ou oito produções de uma mesma obra. Preciso de novos desafios, sinto uma espécie de exaustão ao desempenhar um papel por um tempo muito longo. No início eu possuía a coloratura, depois eu quis desenvolver minhas possibilidades no belcanto e agora sinto que minha voz está se abrindo para um repertório mais dramático e quero desenvolver isso.”

 

Repertório de mulheres fortes

“Acredito que a atuação, a presença dramática no palco tem que vir do interior do corpo do artista, ou seja, do plexo solar, da caixa torácica ou do umbigo, ou de algum ponto entre essas duas partes, onde temos a caixa dos sentimentos. Minha evolução tem sido orientada por essa percepção.

Sinto que, após ter dado à luz e depois de 20 anos de carreira, eu estou pronta para o repertório mais importante de mezzo-sopranos, por isso estou me preparando para cantar Amneris, da Aída de Verdi, e Kundry, de Parsifal de Wagner, para as próximas temporadas.

Não sinto que estou no ponto máximo de minha carreira. Talvez nos próximos cinco ou sete anos eu chegarei a este ponto. Porém, sinto que é uma forma natural de atingir tal pico, pois após este ponto vem o descenso e você se pergunta: e agora? Como se costuma dizer, um músico nunca atinge a perfeição, há sempre uma frase, uma nota, um papel que pode interpretar de uma forma diferente ou melhor. Um músico ou um cantor está sempre em desenvolvimento.

No entanto, atualmente sinto que posso entender os personagens com mais profundidade, suas dúvidas, seu próprio eu, suas verdades – e estou me debruçando sobre um repertório de mulheres fortes. Posso somar minha experiência a essas interpretações, o que torna tudo muito mais estimulante.”

 

Mezzo-soprano por excelência

“Eu sempre fui uma mezzo-soprano, nunca quis ser uma soprano, embora algumas vezes eu cante a parte da soprano. Sou muito feliz em ser uma mezzo-soprano e algumas vezes dizer um ‘oi, estou aqui’ para a condição de soprano.”

 

Respirar magia com a plateia

“Existem artistas que ‘pulam’ do palco para a plateia, que querem agradar e acariciar a todos e há aqueles que permanecem no palco e nele recebem a plateia. Eu acredito mais no segundo caso. Minha principal meta, quando me apresento, é que mil, duas mil, três mil pessoas permaneçam atentas e eu reine sobre elas. Ter a sensação de que quando respiro, a plateia respira junto, se eu paro, a plateia para também. Estes momentos são mágicos, mais que o aplauso que vem depois.”

 

Canto e música devem ser experiências ao vivo

“A voz é algo que requer uma evolução diária. Para mim, o melhor não é somente ficar em silêncio quando não estou no palco. Eu ainda recorro a meu professor para trabalhar meu repertório, pois hoje em dia tudo é gravado. Por um lado é maravilhoso, tudo está disponível no YouTube, pode-se ir à internet para pesquisar e aprender. Por outro lado, as pessoas não têm a experiência da música ao vivo.

Não se trata somente do impacto da voz, é o som, são os sons harmônicos superiores, as vibrações, a atmosfera que só podem ser sentidos na apresentação ao vivo. Você não pode criá-los nos canais do YouTube, em casa em um pequeno computador, não podem ser criados em um cinema. É necessário ter essa experiência na vida real. É como tocar uma pessoa com sua mão: caso você toque alguém com uma luva ou algum outro material entre você e a pessoa, você nunca sentirá a pele. Acredito que o canto e a música têm que ser experiências ao vivo, porque, então, sua alma será acariciada pela música.”

 

O fascínio pela Espanha que permitiu compreender Carmen

“Meu amor pela Espanha decorre, em grande parte, pelo fato de passar boa parte de meu tempo neste país, onde moro com minha família – por uma razão muito simples, não gosto da neve e do frio. A mudança para a Espanha também se deve porque eu queria estar longe de atividades diárias ligadas à música. Viver em Viena, por exemplo, onde moramos por cerca de oito anos, implica em ser reconhecida nas ruas, nos restaurantes, shoppings, e eu não gosto deste assédio constante.

A Espanha tem 320 dias de sol por ano e o aeroporto é muito bom. Após o falecimento de minha mãe, precisávamos que os avós paternos, que vivem em Gibraltar, viessem nos auxiliar no dia a dia com nossas filhas e minha sogra está nos dando uma força muito grande. A primeira vez que visitei a Espanha senti que uma parte da minha alma havia retornado à sua casa. Caso acreditemos em reencarnação, eu provavelmente vivi anteriormente em um país de fala hispânica ou em um país latino-americano. Nunca acreditei em temperamento geográfico, na ideia de que as pessoas no hemisfério norte são frias e no hemisfério sul são calorosas. Eu vi algumas vezes uma reação fleumática no sul e atitudes muito passionais em Helsinque, por exemplo. Portanto, acredito que temperamento é uma expressão da alma, que em geral não pode ser comandada ou educada.

Para mim, obviamente, viver na Espanha me aproximou de Carmen, pois quando eu estava me preparando para este papel, fiquei com meu marido sem as crianças, o que nos permitiu circular pela Espanha e encontrar ciganos. Visitamos cavernas em Granada, conversamos com ciganos em Vigo, fomos ao norte da Espanha e vimos tantas ciganas loiras de olhos azuis, que concluímos ser um clichê a crença em uma Carmen com os olhos negros do sul. Penso que na maior parte da Europa há uma confusão quanto aos ciganos dos Balcãs, seja da Hungria ou da Ucrânia, talvez ciganos da România, com relação ao cigano real da Espanha. Acredito que seja um estilo de vida totalmente diferente, uma teoria diferente envolvendo o estilo cigano da Espanha e penso que eu entendi – ou acredito ter entendido, tudo que envolve a personagem Carmen e como ela deve ser definida.”

 

Na infância, queria ser atriz

“Minha convivência com a música vem desde a infância, pois meus pais eram muito ligados à música, minha mãe era cantora e meu pai um maestro de coral. Daí que desde a mais tenra idade eu ia a concertos, frequentava ensaios, concursos musicais, convivia com música diariamente. Mesmo quando eu tocava piano, aos sete anos de idade, eu queria ser uma atriz dramática, nunca pensei em ser cantora. Eu cantava no coral do meu pai, mas não era minha paixão. Eu queria estar no palco, queria atuar. No entanto, quando eu tinha cerca de 17 anos, eu estava por terminar meu curso secundário, não sabia o que queria. Tentei ser atriz, mas não passei nos exames, meus pais não queriam que eu me tornasse atriz. Tentei fazer inúmeras coisas, ser vendedora, escritora, barwoman, professora de crianças. Em um desesperado sábado de dezembro, fui dormir após discutir com meus pais por não estarem satisfeitos. No domingo, acordei e no café da manhã informei a eles que eu seria uma cantora.”

 

Educação pela arte

“Minhas lembranças sobre a ópera são esporádicas. Lembro que quando eu tinha sete anos, fui com uma amiga assistir Tannhauser, de Wagner. Saímos após o primeiro ato porque achamos extremamente tedioso, em um idioma que não entendíamos e parecia não ter fim. Esta foi minha primeira experiência e eu não acreditava que ópera fosse uma arte interessante.

Agora, vejo o quanto é incrivelmente importante. Minhas filhas, que são profissionais em assistir óperas, já viram La Traviata, Rosenkavalier, Madame Butterfly, A Favorita, Carmen muitas vezes, até mesmo Tosca. É a paixão delas, amam tudo. Logicamente não queremos insistir que sejam musicistas. Porém, nós as estimulamos, elas estudam balé clássico e, a partir do próximo ano elas começarão a aprender a tocar piano, pois acredito que o aprendizado da música é muito importante, crucial na educação das crianças.”


Simplesmente curtir a vida, ser mãe e cantora

“Em alguns momentos, caso eu perceba que minhas meninas sentem mais a minha falta, eu cancelarei meus concertos e outras atividades, porque não existe nada mais importante para mim do que a felicidade de minhas filhas.

Eu também me dou conta que estou ficando mais madura e a minha voz precisa de mais tempo para se recuperar. Não prevejo mais de 50 performances e concertos durante cada temporada. Isto me dá tempo de fazer as demais atividades, familiares e pessoais. Penso também que, após ter estado 20 anos em atividade, quantos anos mais hei de querer continuar? Cinco, dez?  Após isto, posso me tornar uma professora, rever os maravilhosos 30 anos de minha carreira e, de qualquer maneira, após interpretar Amneris no ano que vem, tudo que vier depois em minha vida será um bônus. Eu não tenho nenhum sonho, somente quero curtir a vida, ser mãe e cantora.”

(Desde 2005 Elīna Garanča é artista exclusiva do selo Deutsche Grammophon – DG)