Marcel Boone: a arte de ensinar canto, respeitando a individualidade de cada aluno

O barítono holandês Marcel Boone já se apresentou em óperas e concertos de palcos internacionais importantes, como a Ópera Nacional Holandesa, Staatsoper Berlin, Ópera Nacional de Lyon, Teatro Stanislavsky de Moscou, Volksoper Wien, Teatro Regio di Parma, Ópera Nacional de Montpellier, entre outros. Suas interpretações de Mozart foram aclamadas pela crítica.

Hoje, Boone dedica-se mais intensamente ao ensino. É professor de canto da Hochschule für Musik Basel, na Suíça. Anteriormente, lecionou no Conservatoire National Supérieur de Musique et de Danse de Paris. Paralelamente, mantém um estúdio particular para cantores profissionais.

No Brasil, Marcel Boone tem contribuído na formação de muitos jovens talentos, por meio de parcerias com os programas de educação musical do Mozarteum. Vários cantores brasileiros que frequentaram as aulas de Boone, hoje brilham em palcos internacionais – entre outros Bruno de Sá, que se revelou na academia Canto em Trancoso, hoje Canto Mozarteum. “Quando Bruno não sabia o quanto ele era um talento especial, eu dizia a ele: Bruno, se você for para a Europa, você será uma estrela. E agora ele é uma estrela”.

Apaixonado pelo ensino, Boone diz que cada aluno lhe proporciona uma experiência nova. Sua sensibilidade e seu humanismo se confirmam quando ele afirma que também é um aprendiz, aberto para o que cada estudante pode lhe transmitir.

Em agosto de 2025, contratado pelo Mozarteum, Marcel realizou masterclasses gratuitas para alunos brasileiros. “Amo o Brasil”, ele salienta. Na entrevista a seguir, ele fala sobre a arte do ensino do canto lírico e destaca o diferencial dos cantores brasileiros.

 

O que procura enfatizar em suas masterclasses?

— Boa pergunta. Penso muito nisso. Procuro encontrar uma conexão pessoal com todos. Não se trata só de ensinar, mas aprender algo através dos alunos.

Aprendo com eles, procuro captar o que eles querem para que eu possa ajudar.

Então a ênfase muda de acordo com cada pessoa, cada aluno.

Para mim as aulas nunca são iguais. Tento estabelecer ao máximo uma relação personalizada, individualizada, para que possam dar um passo além a partir de onde estavam.

 

Você afirma que é somente através da liberdade vocal, mental e física que se pode alcançar a verdadeira expressão. Explique por favor esta ideia.

— Para mim, a chave é a liberdade. Nós todos queremos ter controle das coisas, queremos algo a que nos agarrar e é nesse processo que aprendemos que o melhor é deixar ir, deixar livre.

Precisamos controlar a voz, precisamos controlar muitas coisas, mas em certo ponto precisamos aprender a voar novamente, a ser livres novamente. A voz faz parte de nós, a voz não é um instrumento que podemos colocar num canto e deixar lá. Se não tivermos liberdade mental, a voz não poderá ser livre. Se não houver liberdade física, a voz também não poderá ser livre. Portanto, é importante buscar a liberdade da mente e do corpo para produzir um som livre. Para mim, esta é uma ideia belíssima – e também um longo processo.

Para mim, é especialmente importante, como filosofia, não se fixar no controle. Todo mundo quer duas ou três dicas sobre como controlar algo, mas isso não me interessa. Então, sim, é importante entender o quanto sua mente, seus pensamentos, afetam sua voz, o quanto a maneira como você trata seu corpo influencia a voz e, dentro desse processo, procurar manter esse fluxo livre.

 

Como alcançar equilíbrio entre técnica e expressão – ou emoção?

— Também uma boa pergunta. A técnica deve desaparecer. Precisamos de técnica, precisamos de organização, poderíamos dizer. Técnica é organizar as coisas de uma certa maneira, deve ser um meio para atingir um objetivo. O objetivo é fazer música e para isso precisamos do instrumento e do domínio desse instrumento.

Mas se a técnica chama a atenção… Se alguém diz que é uma técnica muito boa, isso não é exatamente bom. Devemos sentir que soa natural e que sentimos as emoções e as intenções da pessoa, que usa sua técnica para tornar isso possível. É um equilíbrio muito delicado, especialmente no canto porque temos uma grande desvantagem com relação a outros instrumentos musicais.

Quem toca violino ou piano, por exemplo, começa aos cinco ou seis anos de idade e aprende a técnica brincando. Já os cantores geralmente são apresentados ao seu instrumento musical, a voz, muito mais tarde, então não podemos fazer essa diferença o tempo todo entre técnica e expressão, temos que tentar essa associação ao mesmo tempo, já que começamos mais tarde.

 

Qual é o prazer de ensinar?

Eu amo este trabalho, amo ensinar, aprender, encontrar pessoas, amo música e amo ajudar pessoas a se tornarem músicos melhores. Ensinar é algo sempre novo para mim. Cada nova pessoa, cada nova aula, me estimulam, nunca sinto tédio. O encontro entre pessoas e vozes é algo muito misterioso, muito pessoal e místico. Sou apaixonado pelo que faço.

 

O que você acha dos alunos brasileiros?

Faz oito ou nove anos que vim para o Brasil pela primeira vez. Ainda na academia Canto em Trancoso [hoje Canto Mozarteum] já fiquei surpreso com a quantidade de talentos brasileiros. Desde então, muitos de nossos alunos foram estudar na Europa e tornaram-se bem-sucedidos. Tenho pensado sobre o porquê do sucesso dos brasileiros.

Acho que os brasileiros são fisicamente livres para se expressar, não são tanto como nós na Europa, que pensamos demais. Brasileiros se sentem muito bem com seus corpos, têm desenvoltura para se expressar. Então, acho que todo brasileiro tem a música em si mesmo… Pode ser samba, bossa nova, qualquer coisa, todo mundo pode cantar, ter esse sentimento de compartilhar música ou cantar em público. Acho maravilhosa essa combinação da paixão sul-americana com a liberdade de expressar qualquer emoção e o fato da música fazer parte do DNA deles. O que eu vejo nas aulas é que todos são muito abertos, ninguém questiona nada, estão apenas dispostos a aprender.

Viajo muito, ouço muitas vozes e percebo que há algo muito especial nos cantores brasileiros.

 

Que recomendação você daria a um jovem aspirante a cantor lírico?

— É algo muito pessoal, diferente para cada um. Eu digo que a técnica vocal é muito importante, pode e deve ser aprendida. Se um jovem cantor não estiver preparado e quiser começar a trabalhar, ainda havendo coisas em sua voz que não estão funcionando, ele pagará o preço.

Outra coisa é manter-se fiel a si mesmo, não é fácil – o que eu quero e não quero, como quero viver minha vida, o quanto a música faz parte disso, se é um sacrifício ter a música como companheira por quase toda a vida…

Há muitas pessoas jovens que não entendem que isso exige sacrifícios, como esperar muito, às vezes pode ser difícil manter contato com amigos e familiares ou construir relacionamentos, no caso de carreiras internacionais. A carreira exige estar sempre em movimento e às vezes as pessoas não percebem qual o impacto que isso pode ter em suas vidas.

Mas, cada um tem que tomar sua própria decisão sobre como quer viver sua vida com a música.

Quanto ao sucesso, para mim é algo que não se define pela popularidade ou o volume de trabalho. Para mim, bem-sucedido é qualquer pessoa que estuda música e entra nesse ramo de alguma forma. Não são apenas aqueles que chegam ao palco de ópera ou de concertos que definem o sucesso.