Orquestra Sinfônica de Bamberg: um diamante sonoro
Por Ana Francisca Ponzio
Em seus 70 anos de existência, a Sinfônica de Bamberg tornou-se uma orquestra mítica na cena internacional. Sediada em uma cidade alemã que é patrimônio cultural da humanidade, cuja arquitetura lembra uma aldeia medieval, esta orquestra desenvolveu uma sonoridade única, que invariavelmente emociona e arrebata plateias de todo o mundo.
Em São Paulo, já se apresentou 19 vezes, a primeira em 1962. Na Temporada de 2016 do Mozarteum Brasileiro, a orquestra se apresentará nos dias 23 e 24 de maio na Sala São Paulo. Também realizará matinê para crianças no Auditório Ibirapuera (dia 21/5) e um concerto ao ar livre no Parque Ibirapuera (22/5).
Aos 53 anos, Jonathan Nott deixa um belo legado para a Sinfônica de Bamberg, que a partir do próximo semestre terá como regente o tcheco Jakub Hrusa. Nott concedeu a entrevista a seguir, por telefone, enquanto estava no Japão para reger a Tokyo Symphony Orchestra. Com generosidade, ele transmite toda sua paixão por seu ofício, somada a grande conhecimento e ao prazer de compartilhar música com o público.
A Orquestra Sinfônica de Bamberg está comemorando seu 70º aniversário em 2016. O que diferencia esta orquestra hoje, na cena internacional?
Jonathan Nott – Dois aspectos caracterizam esta orquestra. Primeiro, é visível que os músicos querem fazer música, querem se comunicar com o público, assim como eles também querem se comunicar um com o outro. Acredito que a plateia percebe isto, é algo muito especial. Há a percepção de que o espectador é convidado a se aproximar, experimentar mais intensamente a música.
Outro aspecto é o som desta orquestra.
Como você define o “som Bamberg”, tão especial que se tornou legendário?
Jonathan Nott – Independentemente de quão alta ou extrovertida seja a música que eu quero que os músicos façam, eles nunca perdem a profundidade do som. Não é uma orquestra com som brilhante e sim com um som que nós chamamos de escuro, denso. É muito especial o jeito como estes músicos tocam, eles mergulham nas profundezas do som. Fazem um som tal qual um diamante.
Você dirige diferentes orquestras ao redor do mundo. Mas, com relação à Sinfônica de Bamberg, quão diferente é trabalhar com esta instituição musical localizada em uma cidade que remonta à Idade Média, onde dez por cento de seus 70 mil habitantes são assinantes dos concertos da orquestra?
Jonathan Nott – O fato de Bamberg ser uma cidade muito antiga, faz com que os músicos que lá vivem sejam confrontados com pedras antigas, ou seja, com as edificações desta antiga cidade. Eu acredito que pedras conseguem falar, possuem história, e as pedras antigas de Bamberg transmitem certa sensação de segurança a qualquer um que ali esteja vivendo. O fato, então, desta comunidade de edificações tão antigas ter dez por cento da população com vontade de participar da atividade de fazer música significa que, psicologicamente, todos os músicos de Bamberg têm um forte sentimento de ter raízes, de possuir um apoio muito forte, que lhes dá razão de ser como músicos. E eles transmitem isto quando viajam pelo mundo. Portanto, acredito que a Orquestra Sinfônica de Bamberg é especial neste sentido, pois não há muitas orquestras no mundo que tenham tal quantidade de comunidade local envolvida com suas atividades diárias de fazer música. Isto dá um sentido especial ao poder da música.
Em junho de 2016 você deixará de dirigir a Orquestra Sinfônica de Bamberg para assumir a direção e regência da Orchestre de la Suisse Romande. Ao mesmo tempo, permanecerá como diretor musical da Tokyo Symphony Orchestra e regente titular e consultor artístico da Filarmônica Jovem Alemã. Como se sente ao encerrar seu trabalho na Bamberg, depois de quase 16 anos como seu maestro principal?
Jonathan Nott – Quando iniciei uma jornada à frente da Sinfônica de Bamberg, 16 anos atrás, eu não sabia aonde ela me levaria. Em um período de 16 anos, compartilhei muitas experiências musicais com a Orquestra de Bamberg, dirigi aproximadamente 650 concertos com um repertório amplo e variado.
Há três anos decidi definir um momento em que eu deveria parar, por inúmeras razões, e uma delas foi simplesmente porque qualquer mudança, em qualquer momento da vida humana, é uma oportunidade para novas experiências. Portanto, acho bom também para a orquestra, a mudança na liderança após 16 anos.
Em São Paulo faremos os quatro últimos concertos dos 650, ou quase isso, que eu e os músicos da Bamberg tocamos juntos. Há certa sensação de comemoração e pesar, do ponto de vista de todos. Mas, devemos nos lembrar de que o tempo não se move da esquerda para a direita, mas sim de baixo para cima. Em vez de ficar no passado, nossa experiência deve caminhar para uma dimensão mais alta.
Beethoven terá um foco especial no programa que a Sinfônica de Bamberg apresentará em São Paulo. Quais são os desafios e as singularidades da música de Beethoven que você procura ressaltar?
Jonathan Nott – Acredito que é um desafio, nos dias de hoje, tocar as sinfonias de Beethoven devido à força destas obras. O fato de estas composições serem tão conhecidas implica que as pessoas comparecem aos concertos com suas próprias ideias sobre como elas devem ser. Deveríamos tocar estas obras como se não houvesse amanhã. Fazer com que a Sexta Sinfonia de Beethoven, por exemplo, possa soar tão possante como era quando foi escrita, é algo que eu assumo como desafio.
Eu gostaria de ir a São Paulo desta vez para tocar Beethoven e por que não tocar as duas sinfonias mais famosas e por que não dar um toque de Beethoven a estes concertos? Todo mundo conhece a Quinta de Beethoven, assim como sua SextaSinfonia. Será interessante ver se conseguiremos fazer com que estas obras soem completamente novas, como se nunca tivessem sido ouvidas antes. Não iremos reinventar a roda, porém a função do músico é se assegurar de que o fogo e a paixão do compositor estavam assentados sobre um pedaço de papel quando ele escreveu pontos pretos sobre ele.
O público terá apenas que ir aos concertos com ouvidos e corações abertos. Certamente vamos desfrutar, juntos, de grande alegria artística.
Certa vez você observou que, dependendo da maneira como diferentes obras musicais são reunidas em um programa, cria-se um novo significado musical. Pode explicar melhor?
Jonathan Nott – Eu sempre sinto que um concerto é uma experiência da primeira à última nota e esta continuidade flui de uma peça à outra. Pode ser simplesmente um contraste, ou uma obra que exibe luzes sobre a outra.
Mesmo havendo um contraste entre as obras, não significa somente mantê-las juntas, mas promover uma jornada emocional e espiritual, arte do início ao fim, algo para não esquecer.
Neste caso, a apresentação ao vivo é fundamental, não é?
Jonathan Nott – Parece-me que a raça humana é uma combinação entre indivíduos e necessidades coletivas. Nos dias de hoje, o indivíduo pode se sentar em frente à tela do computador e não ter necessidade de se encontrar com ninguém. Mas há algo sobre ir a um local dedicado ao som, sentar-se junto a uma grande quantidade de pessoas, sem saber nada a respeito de quem são e celebrar uma experiência em conjunto. Isto é parte da experiência da sala de concerto.
Você já declarou que incentiva a orquestra a tocar com mais paixão do que perfeição. Por quê?
Jonathan Nott – Acho que o músico orquestral “padrão” está ficando cada vez mais competente tecnicamente, está atingindo níveis cada vez mais altos. Uma obra como A Sagração da Primavera, de Stravinsky, que era praticamente impossível tocar quando foi escrita, hoje em dia é tocada normalmente. Acredito que há um perigo quando temos como meta a perfeição, a performance perfeita.
Acredito que a coisa mais importante quando se vai a um concerto é sentirmos oitenta, ou uma centena de indivíduos querendo falar um com o outro pelo som, desejosos de compartilhar aquele som com o público, aí então falamos de alma para alma, ou de ondas cerebrais para ondas cerebrais. Isto tem a ver com compartilhamento, com comunicar. Eu insisto sempre junto às orquestras para que os músicos toquem de corpo e alma, sem que a meta seja tocar perfeitamente, em uníssono.
Você é um artista com experiência extraordinária. O que o impulsionou em direção à música? O que foi fundamental, em sua infância, para despertar seu interesse pela música?
Jonathan Nott – Quando criança, eu cantei no coral de uma catedral na Inglaterra. Há uma tradição de corais masculinos na Grã-Bretanha, atualmente também de corais femininos. Eu tinha orgulho de participar de um coral.
Penso que a experiência de se expressar nestas catedrais maravilhosas onde cantávamos – e estou aqui, mais uma vez, me referindo a pedras que cantam ou falam, como em Bamberg – nos permite sentir a história daqueles que viveram entre estas pedras, ou antigas edificações. Acredito que a experiência de me expressar pela música em um local dedicado especialmente ao espiritual, convivendo com um padrão muito alto, na mais tenra idade, me deixou impregnado pela música e seu poder.
Enfim, eu quis ser cantor, porém não tinha uma voz suficientemente boa. Me envolvi então com ópera, em tocar piano, flauta e eventualmente com regência.
Acredito que a vontade de descobrir a mim mesmo e a outras pessoas através da experiência musical, despontou quando eu tinha 6, 7, 8 anos de idade. Tive naquela época um contato tão profundo com a música, que nunca mais foi possível pensar em minha vida sem ela.
Você também tem especial interesse por música contemporânea. Entre 2000 e 2003, por exemplo, você foi regente principal do Ensemble Intercontemporain, fundado em 1976 pelo compositor Pierre Boulez. Quão importante é este tipo de música para você?
Jonathan Nott – Bem, uma vez mais, como garoto que participou de um coral, eu cantei um número razoável de música contemporânea. Eu curtia cantar desde que fosse uma linda música contemporânea e existe uma quantidade razoável delas. Anos depois, estava aberto às músicas à minha volta.
Daí chega-se ao ponto de ouvir pessoas dizerem: eu gosto de música, porém não gosto de música contemporânea. Eu não as entendo.
Basicamente, se você curte ouvir, sempre haverá inúmeras obras maravilhosas para serem ouvidas. Em cada época, peças maravilhosas surgem e outras nem tanto. Porém, eu sinto que não é justo que nós simplesmente “roubemos” músicas de gerações passadas, sem dedicar um tempo para as músicas de nossa própria geração.
Eu acredito que esta ideia de cada um abrir seus ouvidos, ser sensível, ultrassensível ao som, é um dom que a música contemporânea proporciona. Quanto mais a ouvimos, mais somos exigidos, quanto mais nos acostumamos a ouví-la, mais podemos ouvir a Sétima Sinfonia de Beethoven. É uma relação de dar e receber.
Em Beethoven, as notas estão em certa ordem hierárquica e, caso você não entenda tal ordem, você não entenderá tudo o que Beethoven está tentando dizer. Há muito mais a entender em uma peça de Beethoven do que em uma peça de música contemporânea porque, nela, todas as notas são iguais e não há uma linguagem escondida, somente uma experiência de tempo, de moléculas de ar atingindo nossos ouvidos. Há certa sensação de muita liberdade nisso. Portanto, procuro apresentar música contemporânea, da minha época, como também a música de gerações passadas.
Como você vê a música clássica em um mundo tão virtual quanto o de hoje? Como manter e estimular o interesse das novas e futuras gerações pela música clássica?
Jonathan Nott – O poder da internet permite que alguém experimente coisas, onde quer que esta pessoa esteja, sem grande esforço.
Mas, acredito ser parte de uma necessidade primitiva do ser humano: quanto mais tempo passamos na frente da tela de um computador, solitários, mais forte fica a vontade de sair e compartilhar algo com alguém.
Todo mundo, tantas pessoas quanto possível, jovens logicamente, devem passar pela experiência de usufruir da música ao vivo, o mais cedo possível, porque há uma imensa diferença entre ouvir o som produzido por cem músicos e o som produzido por duas pequenas peças que se introduz nos ouvidos.
É muito importante trazer jovens para viverem esta experiência. Na Bamberg, por exemplo, em cada ensaio eu procuro trazer alguma escola, crianças que vão ao complexo arquitetônico da orquestra para usufruir do ensaio. Muitas vezes, permito que as crianças permaneçam entre os músicos da orquestra enquanto eles tocam, para que sintam como é ter alguém ultrapassando fronteiras.
Caso esta experiência possa acontecer na tenra idade, podemos atingir tantas pessoas quanto possível, isto se expande naturalmente. Por isso, estes concertos ao ar livre, em São Paulo, em uma manhã de domingo, são fantásticos. Podemos sentir quanta alegria está sendo distribuída.
Finalmente, uma pergunta básica: o que a música significa para você?
Jonathan Nott – Não posso imaginar a minha vida sem música. É quase como se a vida e a música fossem exatamente a mesma coisa. Na realidade, raramente passa-se um tempo sem que haja alguma música em minha mente. Ao mesmo tempo, há a paixão por compartilhar experiências. O que realmente mantém as pessoas unidas é o coletivo. Na função de maestro, quanto mais velho fico, mais me sinto um feiticeiro, compartilhando o que sei.