Nelson Freire

Uma conversa com Nelson Freire

Por Ana Francisca Ponzio

A introversão de Nelson Freire é conhecida – principalmente entre os que tentam entrevistá-lo. Mesmo no documentário dirigido por João Moreira Salles em 2003, os silêncios do pianista são respeitados. Afinal, fazem parte de sua personalidade. Por meio de seu laconismo, Nelson Freire parece dizer que a música é seu estado de ser – e neste universo ilimitado as palavras são insuficientes.

Quando Nelson Freire se dispõe a falar, é em tom de confidência, como se a conversa tivesse que ser tão verdadeira quanto sua arte. Isto constatado, o melhor é desfrutar de sua espontaneidade, do seu jeito mineiro de expor o que lhe dá vontade, como um “dedo de prosa” que acontece de repente.

Foi assim que esta pretensa entrevista aconteceu. Após o envio de perguntas por e-mail, chegam aos poucos breves comentários enviados diretamente por Nelson. Parágrafos saborosos de conversa, um por vez, que pedem muito mais. Ele explica que está em Tanglewood, localidade dos Estados Unidos onde se realizam festivais de música no verão. “Dei um recital ontem e me apresento nos próximos dias com orquestra”, ele informa. “Agora preciso ir estudar…”, diz em seguida, interrompendo a conversa virtual.

Tudo indica, a missão da entrevista não seguirá o caminho convencional. Dia seguinte, chega mais um comentário. Quando subitamente o silêncio se faz, surge a dúvida se a conversa está encerrada. Logo vem a resposta de Nelson: “Estou em Nova York, indo pro Canadá amanhã. Vou estar ocupadíssimo com ensaios, concerto e recital. Por mim, nunca falei tanto”.

Voltando-se para os comentários enviados, percebe-se que Nelson falou muito mesmo. Nenhum deles passou por um assessor que poderia dar um acabamento final. Nestes pedaços de conversa, está contida a inteireza de Nelson Freire. Mais do que uma entrevista exclusiva, é como se ele tivesse falado ao pé do ouvido – contando pequenos segredos com simplicidade, o que torna suas respostas mais especiais ainda.

E assim ficamos sabendo de situações da adolescência, quando seu talento precoce já era reconhecido. Nelson faz questão de manifestar seu apreço ao público de São Paulo, revelando que elaborou dois programas diferentes pensando nesta cidade que, segundo ele, teve papel decisivo em sua carreira.

Nascido em 18 de outubro de 1944 no interior de Minas Gerais, na cidade de Boa Esperança, Nelson tinha cinco anos de idade quando sua família resolveu mudar-se para o Rio de Janeiro, então capital da República, para investir na formação musical do filho, cujo talento já impressionava. Caçula de cinco irmãos, seu pai se dispôs a trocar a profissão de farmacêutico pelo emprego em um banco para iniciar a nova fase.

No Rio, onde Nelson mora até hoje, estudou com professoras que ele cita e relembra sempre: Lúcia Branco e Nise Obino.

Nelson também menciona mestres do piano que lhe inspiraram na época: o ucraniano Vladimir Horowitz (1903-1989), o polonês Arthur Rubinstein (1887-1982) e a brasileira Guiomar Novaes (1895-1979). Sua amiga de longa data – a pianista argentina Martha Argerich – faz parte da conversa, quando fala sobre sua condição de eterno aprendiz.

Os comentários de Nelson Freire, reproduzidos abaixo, expressam o que ele tem vontade de falar no momento. O resto fica por conta da genialidade musical que ele compartilhará nos dias 30 e 31 de agosto, na Sala São Paulo, nos concertos que integram a Temporada de 2016 do Mozarteum Brasileiro. Sem necessidade de maiores comentários.

 Tocar de cor*

“Uma das perguntas que me fazem é se eu toco de cor nos recitais. Sempre toquei de memória nas minhas apresentações, salvo raríssimas exceções. A mais marcante foi quando toquei pela primeira vez com Pierre Boulez. Ele quis que eu tocasse o primeiro concerto de Béla Bartók (difícil). A apresentação seria em Los Angeles, em janeiro de 1969. Eu estava na Europa e, antes, fui passar o fim de ano no Rio. Aí vieram Natal, réveillon, verão e praia. Eu, com meus 24 anos, fui deixando pra última hora. Chegou a hora do concerto e eu, com um medão daqueles, fui com o rabo entre as pernas perguntar ao Boulez se ficaria muito feio se eu levasse a partitura pro palco. Ele sorriu e respondeu paternalmente: “feio será se você se perder!”.

Naquele tempo era mal visto tocar com a partitura nos concertos, mas hoje em dia as coisas mudaram. Eu acho importante exercitar a memória, principalmente agora, quando não se sabe nem os telefones de seus melhores amigos. Fica tudo no celular. Está provado que os pianistas são os que menos chances têm de contrair Alzheimer na velhice porque exercitamos muito o cérebro. Duas mãos tocando coisas diferentes, lendo em duas claves – você tem de ouvir o que faz, adaptar-se, usar o pedal e, além disso tudo, memorizar. Toda essa ginástica ajuda a manter o cérebro funcionando.”

Para retribuir o carinho da plateia paulista, elaborou dois programas diferentes

“Quando elaboro um programa, são vários fatores que colaboram. Bom senso, timing, contrastes, lógica. Em geral, os programas se constroem em torno de uma ou duas obras-chaves. É como escolher o que vestir ou criar um menu, para dar um exemplo mais prosaico. Em São Paulo, como toco dois dias seguidos e meu público é muito fiel, acredito que alguns virão às duas récitas. Então, pra esses, resolvi fazer dois programas diferentes. Dá mais trabalho, mas é a maneira de retribuir o carinho da plateia paulista.”

Gratidão a São Paulo

“Sem disciplina não se atinge liberdade na música”

“São Paulo: Sou muito grato a esta cidade, pois nela me foi dada a segunda chance que eu tanto precisava, nos meus 18 anos. Era 1962. Havia voltado de um período de dois anos difíceis na Europa. A expectativa era de um retorno triunfal, com o primeiro prêmio num concurso internacional. Aprendi muito naquela época, menos o gosto pela disciplina. Sem ela, não se atinge a liberdade na música. No regresso ao Brasil, em plena crise de adolescente, desajustado e desestimulado, via todas as portas se fecharem. Ninguém queria saber de mim. Nenhum concerto, nem de graça. O consenso geral era o de um talento perdido. Me inscrevi em vários concursos, mas na última hora desistia. Havia perdido a autoestima e a confiança em mim.

Voltando mais ainda no tempo: aos 12 anos, no Rio de Janeiro, me tornei amigo de um grande apreciador de música. Seu nome: Rodolfo Borghoff. Ele, mais sua esposa Yolanda e os filhos crianças, me acolhiam na linda casa em que moravam, em Santa Teresa, onde passei momentos deliciosos. Depois vieram para São Paulo, onde ele tornou-se diretor da Mercedes Benz. Pois bem, de volta ao ano de 1962: recebo um telefonema da empresa me convidando para tocar com orquestra no Theatro Municipal de São Paulo. Haviam feito uma série de concertos patrocinados pela Mercedes e meu nome foi recomendado, logicamente pelo sr. Borghoff . Pensei comigo, “será que vou conseguir? Bem, lá é São Paulo, não sou tão conhecido, não há a pressão do Rio, vou arriscar. Se for um desastre, ‘tant pis’**! O concerto marcado para a véspera de Natal foi o melhor presente que eu poderia ter tido – a volta da minha autoconfiança. Toquei o terceiro concerto de Prokofiev e foi um êxito! Mas, quando me preparava em casa, só conseguia estudar tocando com o disco da gravação. Sozinho nem pensar!!!

Então, agora todos sabem como São Paulo teve um papel decisivo na minha carreira!”

Horowitz, Rubinstein – e Guiomar Novaes, que ouve até hoje

Foto: Benjamin Eolavega

“Tive um grande privilégio na vida: ter ouvido pessoalmente três ídolos, Horowitz, Rubinstein e a querida Guiomar Novaes. Infelizmente faltaram Rachmaninoff, Hoffmann e Gieseking (este último teria sido possível, Cortot também, mas eu era muito pequeno na época que eles estiveram no Brasil). Mais tarde ouvi Gilels, Richter e Michelangeli. Maravilhosos, mas já de outra geração. Convivi com Guiomar, uma artista e uma pessoa incomparável.
Não me canso de ouvi-la. É sempre uma revelação, como as primeiras vezes em que ouvia todas as suas gravações. Tive a benção de ter sido bem orientado pelas minhas primeiras mestras, Nise Obino e Lucia Branco e também de ter recebido em casa uma educação exemplar de meus pais. Embora tenha sido por algum tempo, nunca me senti uma criança prodígio. Ia à escola e brincava como toda criança. Mas duas horas por dia tinha de ser para o piano. Isso era sagrado. E o final de semana também era sagrado – para o cinema, praia etc.”

 “Prefiro errar certo do que acertar errando”


Tive a sorte de me relacionar com pessoas que me ensinaram muito. Minha amizade com a Martha Argerich me enriqueceu tremendamente não só como pianista mas também como pessoa. Hoje em dia ainda acho que tenho muito para aprender. Procuro manter o espírito aberto, além dos olhos e ouvidos.  Raramente saio totalmente satisfeito de um concerto. Sempre acho que poderia fazer melhor. Tenho horror a rotina, gosto de me arriscar e prefiro errar certo do que acertar errando.”

 

*Tocar de cor: esta expressão usada por Nelson Freire vem do francês “savoir par coeur”, que significa “saber por intermédio do coração”.
** ”Tant pis”: expressão francesa que significa “tanto pior”.